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terça-feira, 19 de junho de 2012

Os Druidas de Valmenor (19)

Kli Van-Kli, "Os Druidas de Valmenor" (c) 2012 Luís Diferr

Na fortaleza do Príncipe, esmaecida pela réstia de neblina matinal, ouve-se a sua voz gritar através da janela do quarto:
Javardo!
– Hem?! O quê? – diz um dos magos, no piso de cima, estremunhado.
– Um javardo... – balbucia outro, entreabrindo os olhos. – Trazem um javardo para o sacrifício...
– Deixem-nos dormir!... Trabalhámos até tarde... – reclama o terceiro, rabugento.
O chamamento do Príncipe é repetido mais abaixo. Por sua vez, a mulher que na véspera depenara as galinhas assoma à porta do torreão e berra esganiçada:
– Javardo!
E este sai de uma espécie de choupana, quase nu:
– Irra!! Que é?
– O Príncipe! – grita-lhe a mulher, galhofeira.
– Megera! – lança-lhe o lugar-tenente. Depois, volta para dentro e diz a alguém:
– Adeus, minha Estrela Rúbia! Tenho que ir!
– Adeus!... – responde-lhe uma voz fatal. – Meu Boi de Cobrição!
Num ápice, Javardo corre para o torreão, passa pela velha, que ri e cacareja enquanto descasca umas batatas, sobe três lances de escada e apresenta-se à porta do quarto do Príncipe.
– Javardo! – vocifera este, ainda deitado no leito, ao lado de um corpo coberto do qual afloram cabelos escuros sobre a almofada. Carcavel parece irritado. – Onde está o címbalo, que eu queria hoje aos pés da cama?
– Irra, senhor, não sei! – protesta o inquirido. – Os homens ainda não voltaram!
– Sem um címbalo para o sacrifício dos magos, parece que terei que lhes entregar um javardo!... – afirma Lascário, arredando as cobertas enquanto se levanta da cama. Usa uma camisa de dormir de linho bordado a ouro.
Hem! – protesta o lugar-tenente, com uma gota de suor na testa.
Uma mulher jovem soergue-se no leito e fita Javardo com os seus olhos escuros, acusadores e frios, que ele aprendera a temer. O lugar-tenente, incomodado, desvia o próprio olhar daquelas pedras de ónix e das pródigas mamas que assomam pela abertura da camisa.
– Que barulho é este? – pergunta Lascário, face ao clamor que se faz ouvir no pátio. – Terão capturado o címbalo?
Acorrem ambos à janela, onde se apertam para olhar para baixo. No pátio, dois homens, no meio da gente da fortaleza, empurram um outro.
– Não – diz Javardo. – Parece que apanharam o Esturjão!
Um dos captores, avistando o Príncipe e o seu lugar-tenente à janela, dirige-se àquele, com verbo polido:
– Senhor, aqui está Esturjão, que encontrámos a dormir no meio das cabras. Acordámo-lo e ele tentou fugir!
– Senhor! – toma o segundo da palavra. – Como achássemos isso estranho, decidimos trazê-lo!
– Fartou-se de dizer palavrões, durante todo o caminho! – volta o primeiro. – Mas confessou finalmente que o címbalo está na aldeia!
– Ou estava... ontem! – exclama o companheiro, olhando furibundo para Esturjão.
– Mas porquê, meu caro Esturjão? – quer saber o Príncipe, exortando-o da janela. – Porque me faltaste ao serviço? Porque me atraiçoaste, Esturjãozinho?
Esturjão começa a choramingar.
– Piedade, nobre Senhor! – soluça ele. – Não tive culpa, o canalha apanhou-me à traição!...
– O que disse Esturjão? – pergunta Lascário aos guardas, com um misto de interesse genuíno e contrariedade. – Não ouvi.
– Disse que foi apanhado à traição e pede piedade! – brada um dos guardas.
– Piedade, Senhor!... – repete o prisioneiro, num lamento. – Tive medo de voltar aqui e ser... (ainda mais baixo:) mordido!...
O Príncipe, aborrecido por não o conseguir ouvir, apesar de se ter debruçado mais à janela, grita aos guardas:
– Mas o que está ele a dizer agora?
– Diz que teve medo de voltar e ser mordido, Senhor!
A velha das galinhas desata a rir, em gargalhadas estrepitosas: – Ha, ha, ha!... Mas que javardice!...
Javardo, que reentrou um pouco, espuma de raiva e cerra a mão direita como se a quisesse esganar.
– Pensei em fugir e abrir um negócio por minha conta! – prossegue o servo, como se falasse consigo próprio.
– E para onde ias tu, grande estúpido?! Para a Helvécia? – pergunta-lhe o Príncipe, zangado.
– Para a América do Sul... – confessa o infeliz, com os olhos baixos.
Mas Lascário já não se interessa pelo que ele diz. Pergunta-lhe, em voz tensa:
– Sabes para onde vais, realmente?
– Para o calabouço! – urra um dos guardas.
– Para o território dos lobos – sugere um miúdo.
– Para casa do Javardo – diz a velha, a rir.
Javardo não se contém. Arremessa-se à janela, apertando o príncipe contra a lateral e berra:
– Velha estuporada! Torço-te o pescoço, como às tuas galinhas!
Incomodado por esta gritaria, mesmo junto à sua orelha, o Príncipe diz-lhe:
– Javardo, esta janela é pequena demais para nós dois.
Com certa dificuldade, ambos se retiram para dentro. 
– Leva-me aquele imbecil aos bruxos – ordena Carcavel. – Eles que façam com ele o que entenderem!
– Porque não a velha? – insinua Javardo.
– Porque a velha foi minha ama-de-peito, Javardo.
– Mas ela já não tem peito, Senhor!...
Mas já o teve e era suave e delicioso. Mamei até aos 12 anos!
«Por isso a velha ficou tão seca!...», pensa Javardo, soltando um grunhido. E cruza o olhar com o da jovem recostada na cama, que desenha no rosto um sorriso cínico ou amargo.
O Príncipe diz-lhe:
– Agora, vai cumprir o que eu te mandei. Se não há nem um javali nem um cimbalino para os bruxos, haverá um esturjão!
Javardo faz um brusco assentimento com a cabeça e sai. Carcavel abeira-se da janela e olha para o grupo que, à volta de Esturjão, o insulta e agride. Murmura:
– Ah, Esturjão, se ao menos não tivesses atraiçoado a minha confiança!...
– Meu Príncipe! – chama a mulher, do lado de dentro.
[CONTINUA]

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